No início do século XIX, um exilado francês se viu diante de um dilema improvável. Joseph Jacotot, professor de retórica, matemático improvisado, patriota revolucionário e homem de vasta erudição, foi nomeado professor de literatura francesa na Universidade de Louvain, na Bélgica. Parecia um posto tranquilo, digno de um intelectual cansado das reviravoltas da política e das guerras. Mas foi ali, longe das academias parisienses e da retórica nacionalista, que ele viveu a experiência mais radical de sua carreira pedagógica — e que viria a ser narrada décadas mais tarde por Jacques Rancière no provocador O Mestre Ignorante: Cinco Lições Sobre a Emancipação Intelectual.
Seus alunos eram flamengos. Ele não falava uma palavra de holandês. Eles, por sua vez, não dominavam o francês. Nada de tradutores, aplicativos ou cursos online. Jacotot tinha apenas uma edição bilíngue de Telêmaco, de Fénelon, publicada em francês e holandês — e uma ideia tão desesperada quanto revolucionária: entregar o texto aos alunos e pedir que aprendessem por conta própria. Sem aulas, sem gramática, sem explicações. Quando semanas depois solicitou que escrevessem sobre o que haviam lido, esperava erros grotescos, confusão, desespero. No entanto, o que recebeu foram redações surpreendentemente coerentes, escritas em francês, com argumentos claros e vocabulário consistente.
Jacotot ficou perplexo. Aqueles jovens, abandonados à própria sorte — ou melhor, à própria inteligência — haviam aprendido, não porque alguém lhes ensinou, mas porque quiseram compreender. Estavam motivados pela vontade de aprender e munidos de uma única ferramenta: o acesso ao conhecimento e a liberdade de explorá-lo por si mesmos. Foi quando ele se perguntou: se isso é possível uma vez, por que não seria sempre?
Duzentos anos depois, continuamos presos ao mito da explicação. Ainda nos agarramos à ideia de que aprender é ouvir, repetir, memorizar. Ainda tratamos o professor como o detentor do saber e o aluno como um recipiente vazio, à espera de instrução. Mas a ciência cognitiva moderna, assim como a experiência de Jacotot resgatada por Rancière, nos convida a repensar esse modelo. Afinal, aprender não é um privilégio dos iluminados — é uma capacidade universal. E, talvez, o maior obstáculo ao aprendizado não seja a ignorância, mas a falta de confiança na própria inteligência.
O que é aprendizagem autodirigida?
Quando Jacotot percebeu que seus alunos tinham aprendido sozinhos — sem aulas, sem gramáticas, sem a intermediação de um mestre — ele se deu conta de algo que muitos ainda hoje evitam encarar: o centro do processo de aprendizagem não está no ensino, mas na ação autônoma do aprendiz. Não é o professor quem “dá” o conhecimento. É o aluno quem o conquista, se — e somente se — desejar fazê-lo.
Essa constatação é, ao mesmo tempo, simples e subversiva. Ela desmonta o edifício em que a pedagogia tradicional foi erguida: aquele em que aprender é seguir instruções e subir, degrau por degrau, os andares da explicação. Jacotot descobriu o que a ciência cognitiva só viria confirmar com maior robustez décadas (ou séculos) depois: o aprendizado real, significativo, é uma construção ativa, interna e muitas vezes silenciosa. É algo que se faz, não algo que se recebe.
A isso damos hoje o nome de aprendizagem autodirigida. Trata-se de um processo em que o sujeito assume controle sobre sua própria trajetória de aprendizado — define seus objetivos, busca os meios, organiza seu tempo, estabelece os critérios de sucesso e avalia seu progresso. Pode contar com a ajuda de professores, colegas, livros, vídeos, fóruns — mas essa ajuda não é o motor, é o suporte. O impulso vem de dentro.
A pedagogia moderna tem se esforçado para enquadrar esse conceito. Malcolm Knowles, um dos nomes centrais da educação de adultos, foi o responsável por sistematizar a ideia na década de 1970 ao desenvolver o conceito de andragogia, que nada mais é do que a ciência de como adultos aprendem. Para Knowles, diferentemente das crianças, os adultos aprendem melhor quando são protagonistas de sua jornada: quando escolhem, planejam e avaliam suas próprias experiências de aprendizagem. Ele argumentava que a motivação intrínseca, a experiência prévia e a necessidade de aplicar imediatamente o que se aprende tornam o adulto naturalmente mais autodirigido.
Gerald Grow, por sua vez, propôs um modelo evolutivo: reconhecia que nem todos os alunos são igualmente autônomos, e que o papel do educador não é apenas transmitir conteúdo, mas ajudar o aprendiz a conquistar sua autonomia. Em seu modelo, o professor deve saber quando ser diretor, quando ser treinador, quando ser facilitador — e, idealmente, quando ser apenas um recurso silencioso que o aluno pode ou não utilizar.
Mas talvez o que mais nos incomode na ideia de autodireção seja o que ela revela sobre nós mesmos. Porque aprender por conta própria exige mais do que inteligência: exige responsabilidade. Exige, também, confiança. Confiar que somos capazes de aprender sem que nos expliquem, sem que alguém organize o caminho por nós. E isso é exatamente o que o sistema educacional nos desensina desde cedo. Ensina-nos a esperar a explicação, o conteúdo certo, o momento certo. Ensina-nos a não confiar no improviso, na tentativa e erro, na nossa própria capacidade de descobrir o caminho enquanto o percorremos.
Jacotot, sem querer, inverteu esse sistema. Forçado pelas circunstâncias, ele colocou os alunos diante do conhecimento sem intermediar nada. E eles aprenderam. Talvez porque não houvesse outra opção. Talvez porque a liberdade, quando levada a sério, assusta menos do que parece. E quando o saber deixa de ser um objeto que alguém entrega, e passa a ser um território que se explora, o aprendizado não apenas acontece — ele se torna intransferivelmente nosso.
E por que isso funciona?
Se a aprendizagem autodirigida é tão natural quanto eficaz, por que ela ainda soa tão herética no contexto educacional formal? Talvez porque ela desafie, em silêncio, o mito mais confortável da pedagogia moderna: a ideia de que é preciso ensinar para que alguém aprenda. E quando essa lógica é quebrada — como no caso de Jacotot — ela não apenas desconcerta. Ela ameaça.
Mas há uma razão pela qual funciona. E não é mística, nem apenas filosófica. É cerebral. A aprendizagem autodirigida funciona porque é o modo como o cérebro humano evoluiu para lidar com o mundo: experimentando, errando, ajustando, criando previsões e corrigindo expectativas. Não é o conteúdo pronto que molda o pensamento — é a interação ativa com o desconhecido que esculpe a inteligência.
As pesquisas em neurociência cognitiva dos últimos 20 anos vêm reforçando essa ideia com dados. O cérebro opera com base em modelos internos que são constantemente postos à prova pelo ambiente. Somos, essencialmente, organismos preditivos. Antecipamos o que esperamos encontrar, e corrigimos nossos erros com base no que de fato encontramos. É esse o chamado “modelo preditivo do cérebro”, proposto por Karl Friston e que vem ganhando espaço entre cientistas cognitivos. Aprender, nesse sentido, é atualizar constantemente esses modelos — e isso só acontece com engajamento ativo, não com consumo passivo de informação.
É nesse mesmo movimento que se insere a vontade. Não basta ter acesso ao conteúdo. É preciso querer lidar com ele. Querê-lo o suficiente para investigar, persistir e reorganizar o que se sabe. E esse querer não pode ser ensinado. Pode ser provocado, pode ser instigado — mas, no fim das contas, é uma decisão silenciosa, interior.
Foi isso que Jacotot testemunhou com seus estudantes flamengos. Não houve “ensino” no sentido convencional. Houve exposição, sim. Houve estímulo, sim. Mas o que realmente houve foi vontade. Os alunos queriam aprender francês. Talvez por necessidade, talvez por desafio, talvez pela simples satisfação de vencer um enigma. E, diante da ausência de explicações, fizeram o que todo ser humano faz quando precisa: recorreram à própria inteligência. Repetiram, testaram, compararam, erraram, refizeram — e, no fim, aprenderam.
A aprendizagem autodirigida funciona porque respeita a arquitetura natural da cognição humana. Ela ativa não apenas a memória, mas o julgamento, a criatividade, a metacognição. Ela exige que o aprendiz pense sobre seu próprio pensar — o que é, segundo inúmeros estudos em educação, um dos fatores mais importantes para a retenção e aplicação do conhecimento.
Allen Tough, em suas investigações pioneiras sobre como adultos aprendem fora da escola, identificou que a maior parte das pessoas conduz projetos inteiros de aprendizagem sem qualquer auxílio formal. Leem, pesquisam, experimentam, observam, e integram o que descobrem em suas vidas pessoais e profissionais. Philip Candy, por sua vez, mostrou que essa forma de aprender não é apenas eficaz — ela é inevitável em um mundo em constante transformação, onde depender exclusivamente da figura do “ensinante” é uma limitação estratégica.
A questão, portanto, não é se a aprendizagem autodirigida funciona. Ela funciona — e temos provas disso em cada criança que aprende a falar antes de ir à escola, em cada profissional que se reinventa por necessidade, em cada pessoa que resolve aprender algo novo sem ninguém para ensinar. A verdadeira pergunta é: estamos prontos para aceitar que a explicação não é uma condição para a compreensão? Que, talvez, ela seja até um desvio?
A pedagogia, ao longo do tempo, construiu métodos para “facilitar” a aprendizagem. Mas há uma ironia cruel nisso: quanto mais nos preocupamos em facilitar, mais tomamos do aprendiz aquilo que ele tem de mais precioso — a experiência real de compreender algo por si. Não é a dificuldade que paralisa. É o excesso de mediação, que sutilmente diz: “Você não consegue sozinho.”
Jacotot, ao abandonar seus alunos com um livro e a tarefa de aprender, cometeu um sacrilégio pedagógico — e revelou, sem querer, um princípio científico: é no esforço de interpretar o mundo com os próprios recursos que o aprendizado se consolida. E é aí que a inteligência realmente se manifesta.
Conclusão: o desafio da confiança
Joseph Jacotot não descobriu um método. Descobriu uma evidência. E essa evidência, incômoda em sua simplicidade, ainda hoje nos escapa por entre os dedos: é possível aprender sem explicação. O que não significa que toda explicação seja inútil, mas que a inteligência não depende dela para funcionar. A explicação, se houver, deve ser ferramenta — nunca condição.
Ao observar seus alunos flamengos traduzindo Fénelon com as próprias mãos e olhos, Jacotot não viu genialidade. Viu humanidade. Viu a mesma inteligência que opera em todos os atos de aprendizado genuíno — da criança que aprende a falar sozinha ao cientista que formula uma hipótese em silêncio, longe dos manuais. Ele percebeu que o ato de compreender é mais antigo que o ato de ensinar. E que, talvez, ensinar seja apenas dar permissão para que o outro descubra por si.
O que esse gesto exige — e é aqui que nos tornamos reticentes — é confiança. Confiar que o outro pode. Confiar que ele tem, dentro de si, os instrumentos para explorar o desconhecido. E confiar, acima de tudo, que o erro é parte do caminho, não um desvio. É por isso que a aprendizagem autodirigida assusta tanto: porque ela desestabiliza o poder do mestre, o conforto da estrutura, a ilusão de controle.
Em tempos em que se fala tanto sobre inovação na educação, é curioso perceber que a ideia mais radical continua sendo a mais simples: deixar que as pessoas aprendam. Sem cercas, sem roteiros excessivos, sem subestimar a inteligência alheia. O mundo muda, os recursos se multiplicam, a tecnologia avança — e ainda seguimos desconfiando de que alguém possa aprender por conta própria.
Mas aprender por conta própria não é um privilégio, nem uma utopia. É a forma mais humana, mais íntima e mais potente de aprendizagem. Acontece todos os dias, em toda parte. E continuará acontecendo, com ou sem permissão, com ou sem chancela. A única escolha que nos resta é se vamos continuar fingindo que não vemos — ou se teremos a coragem de tirar a explicação do pedestal e devolver a inteligência ao seu lugar de origem: dentro de cada um.
Referências
- CANDY, Philip C. Self-direction for lifelong learning : a comprehensive guide to theory and practice. [S.l.]: San Francisco : Jossey-Bass, 1991. Disponível em: <http://archive.org/details/selfdirectionfor0000cand>. Acesso em: 15 mai. 2025.
- GROW, Gerald O. Teaching Learners To Be Self-Directed. Adult Education Quarterly, v. 41, n. 3, p. 125–149, 1 set. 1991. Disponível em: <https://doi.org/10.1177/0001848191041003001>. Acesso em: 15 mai. 2025.
- KNOWLES, Malcolm S. (Malcolm Shepherd). Self-directed learning : a guide for learners and teachers. [S.l.]: Chicago : Association Press, 1975. Disponível em: <http://archive.org/details/selfdirectedlear0000know>. Acesso em: 15 mai. 2025.
- RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante. Cinco Lições Sobre A Emancipação Intelectual. [S.l.]: Autêntica, 2007. Disponível em: <http://gen.lib.rus.ec/book/index.php?md5=F8D00759ED8AEF38563CE7A91374671C>. Acesso em: 15 mai. 2025.
- TOUGH, Allen M. The adult’s learning projects : a fresh approach to theory and practice in adult learning. [S.l.]: Austin, Tex. : Learning Concepts, 1979. Disponível em: <http://archive.org/details/adultslearningpr0000toug_u5c6>. Acesso em: 15 mai. 2025.
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