A preparação e o exercício da profissão de cientista brasileiro são recheados de desafios, contradições e sonhos frustrados. Herói é aquele que consegue ser cientista no Brasil!
A inovação, enquanto substância, parte do indivíduo. As ideias começam com uma pessoa – depois são trabalhadas, aprimoradas, validadas e transformadas em algo mais com o apoio de outros colaboradores, mas aquele pontapé inicial começa na cabeça de alguém. Esse percurso – da ideia a algo mais – é o processo que podemos realmente chamar “inovação”.
A Ciência, no que lhe concerne, pode ser considerada como um dos “algo mais” da inovação. Como parte do processo, ela é chamada à frente a partir de um problema científico, pesquisadores formulam uma hipótese que contribui no entendimento ou na solução desse problema para, em seguida, desenvolvê-la e testá-la. A hipótese é a ideia; o desenvolvimento é a inovação.
O processo de inovação na ciência trilha um caminho de extrema dedicação. Além de um rigoroso processo de formação intelectual – anos de trabalho duro que começam na graduação, passam por programas de Mestrado, Doutorado e, em alguns casos, Pós-doutorado – há também outras jornadas, que podem, em alguns casos, ser até mais difíceis. Ser cientista não é para qualquer um.
Problema 1: o começo
No Brasil, o início da jornada da inovação científica, ou seja, a formação do pesquisador, já começa de maneira turbulenta. Aliás, até a vontade de começar já é problemática: ao olhar para o cenário da pesquisa brasileira, temos a impressão de um enorme deserto com pouquíssimos oásis – e alguns deles são, na verdade, ilusões. A pesquisa científica é pouco valorizada já na educação básica, na qual todo o foco está em preparar os alunos para entrarem nas universidades públicas – curiosamente, os principais celeiros de pesquisadores no país. No entanto, essa preparação nem sequer fala em ciência e sim em Enem, vestibular, PAS e outros processos seletivos para ingressar no ensino superior. O foco da educação básica, especialmente no ensino médio, continua sendo passar no vestibular, ainda que as formas de fazer vestibular tenham sido repaginadas.
Jovens alunos recém-ingressos no ensino superior chegam com um tipo de conhecimento muito específico – voltado à aplicação de fórmulas, conceitos e ideias prontas. Poucos chegam dispostos a pensar por si mesmos, a criticar o que aprendem com algum tipo de fundamento científico. Eles chegam com a capacidade de responder (algumas) perguntas, mas a principal habilidade de um pesquisador só vai ser desenvolvida mais tarde – bem mais tarde: a capacidade de fazer boas perguntas.
Problema 2: a jornada
Superada a educação básica e inciando seus estudos em uma universidade pública, o nosso herói começa a trilhar o caminho das descobertas.
Descobre que a universidade não é, na verdade, um paraíso intelectual; que não há laboratórios de última geração; que não se respira a discussão e o debate científico a cada aula; que os professores preferem ensinar ao invés de levar os alunos a aprender; que seus colegas estudantes também não estão muito interessados em aprender – somente o suficiente para conseguirem seus diplomas e, com sorte, bons empregos. Claro que existem exceções, mas são casos raros.
Somente o jovem mais resiliente e com forte crença no seu potencial para fazer a diferença no mundo consegue manter aquela fagulha da inovação científica acesa e continua a acreditar que pode contribuir com o mundo, que pode avançar alguma área do conhecimento. Por isso já mereceria ser reconhecido e apoiado.
Não costuma ser bem o que acontece. Esses alunos são tratados como nerds, às vezes isolados por seus colegas estudantes, em alguns casos hostilizados por professores e quase sempre tendo que se virar sozinho. Às vezes, encontram alguém que pensa da mesma forma e ganham um alento e, com muita sorte, uma parceria que pode trazer bons resultados. Infelizmente, são poucos casos desse tipo.
Nosso herói ainda está na graduação e, em uma perspectiva bem real, lutando contra o mundo. Espera-se dele a conformidade com os padrões e modelos existentes e que não se envolva com as “questões complexas” da ciência. Essa porta está fechada na graduação.
Mas a coisa começa a mudar se o jovem tiver fôlego, perseverança e recursos para ingressar em uma pós-graduação – preferencialmente um Mestrado. Ali, as expectativas do nosso intrépido futuro pesquisador se reacendem – aquela fagulha que estava quase morta ganha um sopro novo. Os programas de mestrado começam a preparar pesquisadores. Nosso herói, nessa fase da sua jornada, precisa alcançar um certo grau de isolamento do mundo. Os requisitos de leitura e dedicação dificultam relacionamentos pessoais, eventos sociais e até mesmo atividades profissionais. Quanto mais próximo da defesa da dissertação, menos tempo sobra para o restante.
Durante o período do Mestrado, nosso quase-pesquisador começa a entender o tal do método científico – aquilo que, na graduação, se confundia com normas da ABNT – e percebe que o método tem seus fundamentos, mas também seus ritos próprios que precisam ser seguidos caso se deseje a aceitação dos futuros pares. O método tem suas amarras, ainda que justificadas, às quais os aspirantes a pesquisador precisam se adequar.
Mas, para a surpresa do nosso destemido herói, o mestrado não pretende, de fato, formar pesquisadores e sim corrigir a mentalidade necessária para isso. No Mestrado, não se busca necessariamente a construção de novos conhecimentos, mas sim a formação de base teoricamente necessária para isso. <i>De facto</i>, Mestres não possuem oportunidades sérias no mundo da pesquisa científica. Quando conseguem participar de algum projeto, entram na posição de assistentes ou, com muito boa-vontade, de pesquisadores-juniores. Os créditos de qualquer avanço significativo ficam para os Doutores que emprestam seus nomes – e, às vezes, o seu tempo – para aquele projeto.
Orientadores de programas de mestrado – todos Doutores ou Pós-doutores – têm seus nomes publicados como co-autores em qualquer produção científica feita pelos seus alunos. A argumentação para isso é que o orientador, ao assinar uma publicação como co-autor, “empresta” o seu nome e reputação acadêmica ao mestrando. Fica a seu critério, prezado(a) leitor(a), debater o mérito desse raciocínio.
Mas uma nova esperança se acende! Ao terminar o Mestrado e descobrir que as portas da Ciência ainda estão fechadas, nosso relutante herói, com suas últimas forças, decide seguir e ingressar no Doutorado. Aqui sim existe a procura ativa pelo novo. Após quatro anos de estudos ainda mais duros do que os do Mestrado, as portas da Ciência se abrem!
Problema 3: o custo da jornada
Uma das primeiras bifurcações na jornada é a decisão de seguir a vida científica ou atender o chamado do mercado de trabalho. A primeira, orientada ao sonho e à expectativa de contribuir para a melhoria do mundo, é um caminho longo e com muitas incertezas: como começar, onde estudar, de que maneira identificar campos de estudos, tendências, referências… A segunda, que tem os pés no chão e um horizonte menos nebuloso, mostra um percurso que também tem seus desafios, mas já possui muitas referências e um mapa bem aceito e detalhado pela sociedade (ainda que esse mapa esteja sendo reconstruído a cada dia pelos avanços da tecnologia).
Até certo ponto, esses caminhos são paralelos, mas logo se distanciam ao ponto de um ter dificuldade em enxergar o outro. Na estrada da pesquisa, há custos altos e poucos recursos financeiros para garantir uma qualidade de vida razoável. Na grande maioria dos casos, doutorandos – os verdadeiros protagonistas da pesquisa científica – acumulam os papéis de professor e de bolsista em algum programa de apoio à ciência, como CAPES, CNPq e outros. Apesar da maioria desses programas de bolsa exigirem dedicação integral, os valores repassados aos pesquisadores são baixos – o CPNq paga aos alunos de mestrado e doutorado os valores de R$ 1.500 e R$ 2.200, respectivamente. A CAPES oferta bolsas de R$ 4.100 para pós-doutorandos e os mesmos R$ 2.200 para doutorandos. Mesmo assim, não há recursos suficientes para garantir bolsas a todos os alunos. Para outras modalidades, o CNPq pode chegar a conceder bolsas de até R$ 6.200 para projetos de desenvolvimento científico e tecnológico, mas pouquíssimos pesquisadores conseguem receber esse valor. Sabendo como anda o Custo Brasil, é difícil imaginar que alguém queira seguir a carreira de cientista por motivação financeira.
Resta, como alternativa, complementar a renda de alguma maneira, ou conseguindo bolsas vindas da iniciativa privada, ou captando fundos internacionais, por exemplo. Mas isso requer ainda mais dedicação do pesquisador, além de enorme esforço burocrático para conseguir uma autorização das universidades para atuar em projetos externos.
Problema 4: a realidade
A essa altura, nosso herói já entendeu os desafios que terá e que, infelizmente, as portas abertas da Ciência não eram exatamente o sonho que pensou que seria. Também descobre que, como todo herói, precisa batalhar diariamente para fazer o seu trabalho e atingir seu objetivo final – a inovação científica. Aqueles anos de dedicação – que começaram na graduação e passaram pelo Mestrado e Doutorado; que exigiram sacrifícios pessoais e resiliência; que afastaram e isolaram o pesquisador do mundo – entram em conflito com a realidade: não há recursos para financiar a pesquisa científica. Aparentemente, a maior parte da verba disponível para a Ciência foi distribuída pelo Governo para outras áreas.
E nosso super-herói percebe que precisará deixar a ciência de lado e tratar de conseguir financiamento para sua pesquisa. Ele tira o chapéu de pesquisador, coloca o de empreendedor científico (mesmo que seu preparo para isso tenha sido absolutamente zero) e vai atrás de dinheiro. Primeiro, ele vai à própria universidade, que possui algumas iniciativas (sim, ele ainda está na universidade, pois é por é lá que os cientistas trabalham, não é verdade?). Mas rapidamente percebe que os grupos de pesquisa sofrem, em sua maioria, do mesmo problema: não têm dinheiro. Então começa a elaborar propostas para os Fundos de Apoio à Pesquisa; tenta captar recursos internacionais; procura fazer parcerias com outras universidades…
A essa altura, a maioria dos cientistas é forçada a tomar decisões difíceis. Nosso pobre herói mal consegue se sustentar com as bolsas que obteve enquanto estudava – até porque já não é mais estudante. No entanto, durante seu curso de doutorado, ele conseguiu ter alguns artigos aceitos em publicações de reconhecimento internacional, participou de alguns congressos e contactou pesquisadores de outros países – nos quais a situação é mais favorável à inovação científica – e esses contatos renderam bons relacionamentos.
E o teoricamente inevitável acontece: nosso herói é chamado para atuar internacionalmente! Ele está feliz, porque, em outro país, poderá trabalhar com o que sempre sonhou: fazer Ciência, inovar, descobrir coisas interessantes!
Mas, para o Brasil, essa decisão representa dois prejuízos: o primeiro, financeiro – formar um aluno de graduação em uma universidade pública, segundo dados do MEC de 2016, custava pouco mais de R$ 3 mil por mês, o que totaliza, para um curso médio de 4 anos (fora as greves), R$ 144 mil. As formações de Mestrado (dois anos em média) e de Doutorado (quatro anos em média) são mais caras, pois exigem investimentos adicionais para acompanhamento dos projetos de pesquisa, laboratórios e outros itens. Já vi estimativas que o custo total de formação de um único pesquisador no Brasil pode passar de R$ 5 milhões, dependendo da área.
No entanto, o segundo prejuízo é ainda maior: a perda do nosso herói e da sua capacidade de inovar cientificamente no país, o qual vai exercer seu heorísmo atendendo as necessidades de outros países, outras culturas, outras pessoas.
Parabéns para ele, que merece nossos aplausos por essa jornada tão difícil e tortuosa. Lágrimas para nós, brasileiros, que perdemos uma mente brilhante, que começou com um sonho de mudar o mundo e que fará isso em outro lugar.